sexta-feira, 12 de abril de 2013

Césio-137


Em 1987, na cidade de Goiânia, o país se deparou com o maior acidente radioativo da história do Brasil. Dois catadores de lixo encontraram por acaso, em meio aos entulhos de lixo do Instituto Goiano de Radioterapia, um aparelho de radioterapia abandonado. A infeliz ideia de levar o aparelho para casa despertou o instinto curioso dos catadores, afinal não é todo dia que se encontra um pó brilhante tão atraente como aquele encontrado dentro do aparelho. Despreocupados, dividiram o pó entre parentes e amigos. Sintomas de contaminação apareceram 4 horas após a distribuição do pó. Foram quatro óbitos na primeira semana após o contato direto. Mais de 120 vítimas com sintomas de variadas gravidades.Os túmulos de concreto foram enterrados junto com 1.200 caixas, 2.900 tambores e 14 contêineres com o lixo radioativo (todo material contaminado com a radioatividade) revestidos de concreto e aço em um depósito construído na cidade de Abadia de Goiás, tudo isso para evitar a emissão de material radioativo.

Uma das maiores controvérsias do caso, entre tantas outras, é a quantidade de vítimas. Segundo Odesson Alves, presidente da Associação das Vítimas do Césio (Avcésio), apenas 120 pessoas foram reconhecidas como vítimas diretas do acidente pelo governo de Goiás. “A Associação das Vítimas e o Ministério Público do Estado de Goiás acreditam que 1500 pessoas tiveram envolvimento direto e indireto com o Césio 137” – esclarece Odesson. As 120 pessoas consideradas vítimas diretas deveriam receber assistência médica integral até a terceira geração, porem as coisas não funcionam assim. Ele afirma ainda: “Estas pessoas ficaram um ano sem receber os medicamentos. Agora estamos recebendo, mas não sabemos até quando”.  Para ser considerada vítima do acidente é preciso comprovar a contaminação ou apresentar doenças relacionadas a este. As vítimas cadastradas são divididas em três grupos, de acordo com o grau de contaminação, o que vai ocasionar a diferenciação da quantia da pensão a ser paga a cada um deles. Ou seja, uma estratégia suja do governo para jogar as vítimas umas contra as outras, já que umas recebem mais que outras. “Tem que acabar com essa hipocrisia de grupo 1, 2 e 3. Todos nós somos vítimas do acidente” — desabafa Marilene Gonçalves Silveira, que ainda não foi reconhecida como vítima.



A primeira vítima do caso foi uma garotinha de apenas seis anos, Leide das Neves Ferreira, hoje considerada símbolo da tragédia. Sua mãe, Lourdes das Neves Ferreira, até hoje se sente culpada. “Fica passando um filme na minha cabeça... sofrimento, dor, tristeza e angústia. Eu me arrependo e cobro de mim mesma. Se eu não tivesse ido tomar banho, talvez ela não tivesse ingerido [partículas de pó do césio]”, afirma Lourdes, que também perdeu o marido, Ivo Alves Ferreira,16 anos após o acidente na mesma situação. O próprio Odesson, que manuseou o elemento químico por apenas dois minutos, no máximo,carrega na mão sinais do contato com o material - “Além da palma da mão que eu perdi, perdi também parte de um dedo e outro ficou atrofiado”- explica. Conta ainda que até hoje a família não se refez completamente. “Uma coisa que dói muito na gente é o afastamento, principalmente da família. A nossa família era muito próxima, gostava de se reunir para fazer um almoço, um churrasco. Hoje é muito ruim. As pessoas não podem mais juntar porque o assunto fica desagradável. A gente não consegue fazer um almoço de família sem tocar no assunto. E isso dói muito”, desabafa.


Os sinais da tragédia vão além de marcas no corpo, perdas físicas ou mortes. As vítimas ainda tem lidar com a violência psíquica e com o preconceito. Na época foram proibidas de sair do estado. O caixão da pequena Leide foi apedrejado pela população precipitada. A pressão psicológica causou muitos suicídios, dos que não morreram muitos entraram em depressão. Sem falar no descaso do governo com as vítimas. Na época, muitas pessoas trabalharam na descontaminação da cidade desinformadas e desprotegidas. Não houve esclarecimento da situação de risco para a população, equipamentos de segurança adequados não foram distribuídos aos trabalhadores, não passaram informações sobre as sequelas que poderiam contrair ou que eles trabalhavam com material radioativo altamente contaminante. – “Ninguém falava que esse trabalho traria sequelas. Na época o pessoal ganhava uma diária e hora extra, e chegava a fazer muita hora extra. A gente não sabia o que era só depois que fizemos um curso é que começamos a ter noção do tamanho do problema. Aí nós ficamos sabendo da radiação e todo mundo começou a sair do trabalho. – Disse Mário Rodrigues da Cunha, que também trabalhou na descontaminação. O governo faz de tudo para não assumir a responsabilidade de pagar a indenização, sempre encontra uma brecha para escapar dos termos de responsabilidade. Contudo o AvCésio não aceitou tamanho descaso e por volta do ano de 2006 realizaram um seminário para discutir a situação das vítimas e estabelecer um plano de lutas, enfatizando principalmente o desejo de fazer com que o governo reconheça como vítimas as pessoas que trabalharam no acidente e tiveram de alguma forma prejuízo. Fazer com que o governo garanta até a 3ª geração o tratamento médico a todas as vítimas, a criação de um centro de referência para tratamento, pesquisa e treinamento de profissionais que vão lidar com as vítimas do Césio foram outras importantes reivindicações.


Logo quando a CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) examinou uma parte da população da região do acidente e constataram 244 níveis de radioatividade e quatro mortos, os Ministérios Publico e Federal moveram uma sentença de Ação Civil Pública condenando a CNEN a pagar um milhão de reais às vítimas, sem contar a assistência de saúde integral até terceira geração e o monitoramento contínuo das populações afetadas ou que possam vir a ser atingidas. O Instituto de Previdência e Assistência Social do Estado de Goiás, bem como dois responsáveis pelo hospital de onde foi retirada a máquina de raios-X, também foram condenados ao pagamento de multa individual de R$ 100 mil. Mas até hoje a ociosidade do Estado no que se refere ao acompanhamento médico das vítimas é ridícula. Não cumprem com os acordos, não enviam remédios, e os médicos agora afirmam que as doenças não estão relacionadas ao caso. Ou seja, como sempre o Estado fugiu da culpa e cometeu um crime ainda maior quando deixaram as vítimas sem tratamento médico, sem acompanhamento psicológico e sem indenização. A dignidade e integridade dessas pessoas escorrem para debaixo do pano, enquanto as autoridades responsáveis fecham os olhos e ouvidos para o caso. Até quando?

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